Grande
marco para o reconhecimento dos direitos de indígenas no Brasil, a Constituição
de 1988 completa 25 anos nesta semana. Para a presidente da Funai (Fundação
Nacional do Índio), Maria Augusta Assirati, não há razões para celebrar.
Nas
últimas semanas, congressistas da bancada ruralista aumentaram a pressão para
alterar um ponto da Carta que, segundo Assirati, trata de uma questão essencial
para a sobrevivência desses povos. Eles querem transferir do Poder Executivo
para o Legislativo a competência de demarcar terras indígenas.
A
ação, diz a presidente da Funai, pode retardar ou até impedir novas
demarcações. "Este é, de fato, o momento mais delicado desde a promulgação
da Carta", afirma Assirati, que assumiu a chefia do órgão oficial
indigenista em junho.
Em
entrevista à BBC Brasil, ela diz que mesmo dentro do governo a Funai enfrenta
obstáculos para executar seu trabalho. Segundo Assirati, declarações públicas
de órgãos oficiais criaram um ambiente "totalmente desfavorável" a
novas demarcações, atrasando processos em quase todo o país.
Afirma
ainda que o governo não estava preparado para a complexidade da construção da
usina de Belo Monte, no Pará. Em vez de mitigar os efeitos da obra entre
indígenas, diz a presidente da Funai, as ações da construtora voltadas a esses
povos causaram "impactos enormes, alguns deles irreversíveis".
Leia,
a seguir, os principais trechos da entrevista, concedida na sede da Funai.
BBC Brasil - Na semana em que Constituição de 1988
completa 25 anos, índios protestam em vários pontos do país e dizem enfrentar
as maiores ameaças a seus direitos desde a promulgação da Carta. Concorda com a
avaliação?
Maria Augusta Assirati - Concordo. Em 1988, tivemos um conjunto
de avanços, como a garantia territorial e a valorização de crenças e tradições,
e passamos a implementar esses direitos. Houve algumas tentativas de reduzir e
rediscutir esses direitos, mas essas tentativas nunca foram tão claras como
agora. Está
em curso um conjunto de proposições no Congresso para rever a própria
Constituição. Este é, de fato, o momento mais delicado desde a promulgação da
Carta.
BBC Brasil - Quais propostas mais preocupam?
Assirati - As que transferem parcela da atribuição no processo de
demarcação ao Congresso. Além da inconstitucionalidade dessas propostas, porque
ferem cláusula pétrea, da separação de Poderes, elas revertem um direito
originário. Elas poderiam retardar ou impedir o avanço das demarcações no país.
Também
nos preocupam proposições para regulamentar o parágrafo da Constituição que
define o que é de relevante interesse nacional e, portanto, estaria excluído da
possibilidade de demarcações. Nesse contexto de busca de avanço territorial do
agronegócio, isso poderia representar um impacto muito negativo.
Há
ainda propostas que podem colocar em risco inclusive demarcações já realizadas,
o que causaria uma completa aniquilação de direitos já conquistados pelos
indígenas.
BBC Brasil - O governo está negociando essas
propostas com os congressistas? No início do ano, numa aparente tentativa de
acalmar os ânimos, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, disse que o
governo iria alterar o processo de demarcação.
Assirati - Para nós (Funai), não há possibilidade de negociação.
Muitas vezes, pessoas contrárias a demarcações entendem que há subjetividade
grande e que poderia haver diálogo para que outros interesses fossem
contemplados no processo.
Quando
se fala de pequenos agricultores, de pessoas que usam terra para produção
comunitária, como quilombolas e ribeirinhos, é evidente que o Estado deve
buscar equilibrar esses direitos.
Mas
esses argumentos têm sido usados em defesa de um uso da terra para a produção
econômica e para o crescimento econômico pura e simplesmente. Compatibilizar
demarcações com essas intenções é difícil, porque você está tratando de um
direito que conflita com um interesse, e não com outro direito.
BBC Brasil - Quais serão as mudanças no processo
de demarcação?
Assirati - Poderemos dar mais transparência aos critérios que levam à
identificação e delimitação de uma área de ocupação tradicional pela Funai.
"Do
total que havia para ser demarcado em 1988, faltam cerca de 3%. Mas desde então
houve surgimento de outras comunidades, dissidentes, e avaliamos que áreas para
certos grupos são insuficientes. Então são um pouco mais do que aqueles 3%."
A
segunda coisa é: quando oponentes a processo de identificação e delimitação têm
alguma divergência, essas contestações hoje são analisadas e julgadas pela
própria Funai. Acho que não haveria prejuízo se outro órgão, e no meu
entendimento esse órgão seria o Ministério da Justiça, avaliasse essas
contestações.
BBC Brasil - E quanto à inclusão de outros órgãos
no processo, como a Embrapa, conforme a ministra Gleisi aventou?
Assirati - Se o órgão tiver informação que possa contribuir com a
demarcação, essa contribuição é bem-vinda. Mas somos contra a possibilidade de
uma intervenção tendente a inviabilizar o processo.
BBC Brasil - Quanto de terra ainda falta a
demarcar no Brasil?
Assirati - Do total que havia para ser demarcado em 1988, faltam cerca
de 3%. Mas desde então houve surgimento de outras comunidades, dissidentes, e
avaliamos que áreas para certos grupos são insuficientes. Então são um pouco
mais do que aqueles 3%.
BBC Brasil - O governo Dilma tem homologado menos
terras indígenas que os anteriores, e há 21 processos de demarcação parados no
Ministério da Justiça ou na Presidência sem qualquer contestação judicial. Por
que o ritmo das demarcações diminuiu?
Assirati - Logo que a Constituição foi promulgada, demarcaram-se áreas
muito grandes, sobretudo na Amazônia. Ficaram para as etapas presentes áreas
mais antropizadas, onde há maior dificuldade de trabalhar, no Centro-Oeste, Sul
e Sudeste.
Mas,
de fato, há processos que não tiveram andamento. Eles tramitaram, seguiram ao
Ministério da Justiça, seguiram eventualmente até a Casa Civil, que é quem faz
a pré-análise do processo de homologação para a presidente Dilma, mas não
tiveram nenhuma conclusão.
BBC Brasil – Por quê?
Assirati - Essa pergunta que tem de ser feita aos outros órgãos
(Ministério da Justiça, Casa Civil e Presidência). Muitos desses processos não
caminharam por justificativa de que instaurariam conflitos na região, mas não
temos elementos para afirmar que em todas essas áreas isso ocorreria.
"Demarcar
terra indígena nunca será ação que gere zero conflito. Mas não é somente a
delimitação que faz com que o conflito ecloda, há um conjunto de situações
precedentes, como problemas históricos de ordenamento fundiário."
Demarcar
terra indígena nunca será ação que gere zero conflito. Mas não é somente a
delimitação que faz com que o conflito ecloda, há um conjunto de situações
precedentes, como problemas históricos de ordenamento fundiário.
BBC Brasil - Chegou-se a um acordo para solucionar
conflitos que envolvem indígenas no Mato Grosso do Sul?
Assirati - Sim. Pensamos na seguinte solução: o Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que anda com dificuldade para
encontrar áreas para fazer reforma agrária, compraria terras do Estado do Mato
Grosso do Sul para realizar esses assentamentos.
E os
recursos da venda das terras contribuiriam para que o Estado pagasse produtores
rurais de áreas que estão em litígio judicial [devido a processos
demarcatórios]. Assim, os produtores sairiam da área e poderiam comprar outras
terras.
Isso
foi pensado para a situação da fazenda Buriti [onde em maio um índio terena
morreu em ação de reintegração de posse; pouco depois, a então presidente da
Funai, Marta Azevedo, deixou o posto], mas poderia ser ampliado para outras
terras indígenas.
BBC Brasil - Por que essa solução ainda não foi
aplicada?
Assirati - A solução tem apresentado dificuldades porque o Estado (MS)
não indicou um banco de terras e tem colocado dificuldades em relação à
avaliação dos valores de terras. Isso tira a credibilidade dos envolvidos nesse
processo.
BBC Brasil - No começo do ano, anunciou-se que a
ministra da Casa Civil teria determinado a paralisação de demarcações no Sul.
Isso de fato ocorreu?
Assirati - Nunca fomos oficialmente notificados, mas tivemos notícia
de que alguns governadores teriam solicitado à Casa Civil que adotasse essa
medida, e a Casa Civil determinou que se paralisassem demarcações no Rio Grande
do Sul, Paraná e Santa Catarina.
BBC Brasil – Então as demarcações continuam como
sempre?
Assirati - Mais ou menos. Esse cenário colocou um ritmo diferente para
as demarcações, porque essas manifestações públicas e declarações oficiais de
órgãos do governo deram muita força a produtores rurais e a agentes públicos
contrários à demarcação.
Em
algumas situações, quando tentávamos avançar, tivemos impedimento. Não um
impedimento explícito do governo federal, mas de agentes locais.
Criou-se
uma conjuntura totalmente desfavorável, em que aqueles contrários às
demarcações buscavam instrumentos para paralisar ou retardar processos, seja
via judicial, via articulação política ou pela intimidação de servidores da
Funai. Isso trouxe um novo ritmo aos processos de demarcação em quase todo o
Brasil.
BBC Brasil - Como anda o cumprimento das
compensações a indígenas pela construção da usina de Belo Monte?
Assirati - Houve um atraso enorme e muitas condicionantes não foram
cumpridas. Mesmo antes de o empreendedor começar a trabalhar, já havia mudança
completa no modo de vida das pessoas da região.
Houve
um afluxo enorme de pessoas a Altamira, e algumas ações para diversas
populações indígenas foram pensadas de forma emergencial. Essas ações não
conseguiram preparar a intervenção do empreendedor na região. Isso
causou impactos enormes, alguns deles irreversíveis.
BBC Brasil - Que tipo de impactos?
Assirati - Comunidades rachadas, comunidades aldeadas que passaram a
viver quase 100% de seu tempo na cidade, e com isso deixaram de plantar.
Passaram-se dois anos na região de Altamira sem que comunidades que
tradicionalmente são agricultoras plantassem um pé de mandioca, porque ficavam
o tempo inteiro indo a Altamira solicitar lista de compras para o empreendedor.
Isso
mudou hábitos alimentares, deixou indígenas que ficavam na cidade confinados
numa Casa do Índio em condições extremamente precárias. Houve brigas e mortes
de indígenas nessa situação de confinamento e enfrentamento étnico. As
consequências foram muito graves.
BBC Brasil - Os problemas estão sendo contornados?
Assirati - Estamos conseguindo entrar no eixo. Estamos priorizando um
programa para que indígenas pudessem ao menos voltar a se relacionar com seu
modo de vida tradicional na aldeia. Agora há um número menor de indígenas
frequentes em Altamira, mas estamos atrasados.
BBC Brasil - Quem é responsável por essa situação?
Assirati - Nenhum dos atores envolvidos estava preparado para a
complexidade social, étnica e de relações públicas que foi Belo Monte. Não
estavam preparados para chegar a uma cidade como Altamira, onde havia carência
total do Estado.Parte
da população passou a acreditar que o empreendimento seria a grande solução
para todos dali.
BBC Brasil - Quais foram as falhas da Funai no
processo?
Assirati - Não estávamos preparados para um empreendimento que
envolveria dez etnias, mais de dez terras indígenas. Só o componente indígena
do EIA-Rima (estudo de impacto ambiental) de Belo Monte tem dez volumes. Era
impossível se apropriar de todos os detalhes técnicos.
Tivemos
uma série de situações imprevistas, como ocupações de canteiro, e isso levava o
empreendedor e órgãos do governo a atender as demandas pontuais dos índios. A
Funai esteve presente em todas essas discussões. Os indígenas faziam pedidos, o
empreendedor dizia que era possível, e a Funai ficava sem protagonismo e sem
força para reverter essa lógica.
Em
2012, encerramos a cooperação com a Norte Energia no trabalho de questões emergenciais
e passamos a pensar em políticas públicas para acabar com a lista de compras,
combustível, veículos e tudo o que circulava nos balcões em Altamira. Temos um
grande passivo para reverter.
BBC Brasil - A Funai teme que os problemas de Belo
Monte se repitam na bacia do Tapajós? O órgão foi comunicado sobre intenção do
governo de construir hidrelétricas na área?
Assirati - Essa informação chegou à Funai há algum tempo. Apontamos
preocupações e continuamos tendo essas preocupações.
Há no
Alto Tapajós algumas terras indígenas bastante conservadas. No Médio Tapajós,
há aldeias muito próximas de centros urbanos, com problemas como atividades
ilícitas nas terras indígenas e apropriação de índios para trabalhos
irregulares. Achamos
que, se é pra fazer empreendimento desse porte, antes precisa haver no mínimo
cinco anos de investimento em ações do Estado na área.
João
Fellet - Da
BBC Brasil em Brasília
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