Sônia Guajajara é hoje a porta-voz do movimento
indígena brasileiro. Recém nomeada Coordenadora Executiva da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib), ela convoca os índios e toda a sociedade
brasileira para uma mobilização nacional em defesa dos direitos indígenas
conquistados há exatamente 25 anos com a Constituição Federal.
Nascida em 1974, em uma aldeia do povo Guajajara,
na região de floresta do Maranhão, Soninha, como é apelidada, esteve por cinco
anos como vice-coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia (Coiab). Hoje, como uma das mais combativas lideranças indígenas do
país, passa a maior parte do seu tempo em Brasília, enfrentando cara a cara os
seus adversários da bancada ruralista do Congresso Nacional.
Para Sonia existem três fases do movimento indígena
no Brasil: “A gente teve o momento pré-constituinte, onde as lideranças lutaram
pra garantir os direitos indígenas. Depois, teve o momento de lutarmos pelo
cumprimento dos direitos adquiridos. E agora, estamos lutando para não perder
esses direitos”.
Projetos de leis e emendas à Constituição que tramitam
no Congresso ameaçam, sobretudo, os seus direitos territoriais. Uma ofensiva
promovida por deputados ligados ao agronegócio, por meio das Propostas de
Emendas Constitucionais números 038/99 e 215/00, que propõem transferir a
atribuição da demarcação do Executivo para o Legislativo, e a 237/13, que
permite o arrendamento das terras indígenas para grandes produtores rurais.
Também defendem o Projeto de Lei 1610/96, que permite a mineração em
territórios demarcados, e do Projeto de Lei Complementar 227/12, que legaliza
latifúndios e assentamentos dentro das terras indígenas.
O movimento indígena também se diz pronto para se
defender dos ataques do Executivo, com as Portarias 419/11 e 303/12, que
pretendem estender a todo o Brasil as condicionantes definidas para a Terra
Indígena Raposa Serra do Sol, e o Decreto 7957/2013, que regulamenta a atuação
da Força Nacional a prestar auxílio à realização de estudos sobre impactos
socioambientais. “O governo Dilma foi o que menos homologou terra desde a
promulgação da Carta Magna em 1988”.
Hoje, o foco de combate dos índios é contra a PEC
215. A bancada ruralista prometeu instaurar na próxima semana a Comissão
Especial que irá discutir a proposta que acaba de vez com as demarcações de
terras indígenas no Brasil.
A mobilização acontece de 30 de setembro a 5 de outubro com programação agendada em todo país. Em Brasília, são esperadas mais de mil lideranças indígenas de todo país que estarão acampadas em frente ao Congresso Nacional para o ato público na terça-feira 1º: “Como dizem nossos parentes, o momento é de guerra. A gente tem que ir para cima mesmo. Eles estão vindo com muita força”.
CartaCapital: Como se
iniciou a luta pelos direitos indígenas no Brasil?
Sônia
Guajajara: O território
era a principal bandeira, foi o que motivou a luta pela Constituição Federal,
em 1988, quando as lideranças participaram ativamente para garantir os nossos
direitos. Conquistamos dois capítulos pequenos, mas bem importantes, porque dão
a nossa garantia territorial. Logo depois, foi se configurando a criação das
organizações indígenas no Brasil. Foi quando surgiu a Coiab, em 1989, no
momento pós-constituinte, e outras organizações. O movimento indígena foi se
organizando para lutar pelo cumprimento do direito adquirido.
CC: Muitas terras
indígenas foram demarcadas nessa época?
SG: Por muito
tempo a gente lutou pela questão do cumprimento e aí se avançou na demarcação
das terras, principalmente na Amazônia. No resto do Brasil, não muito. Povos
que vivem no Mato Grosso do Sul e em estados do Sul e Nordeste até hoje não
conseguiram demarcar suas terras que foram dadas pelo próprio governo dos
estados aos fazendeiros de forma ilegal. Então o movimento indígena trabalhou
muito nesse momento. Depois que se avançou na demarcação das terras na
Amazônia, a gente começou a luta pela sustentabilidade. Não bastava a terra
garantida, tinha que se fazer a gestão, manter a terra protegida, sem invasões.
A gente lutava por proteção territorial, saúde e educação. Alguns direitos
foram conquistados. A educação indígena virou política pública, a saúde também.
Ainda há muita coisa errada, mas são direitos conquistados pelo movimento
indígena, que começou a ter mais incidência nos espaços de decisão dos governos.
CC: E esses direitos conquistados estão
ameaçados hoje?
SG: O Congresso Nacional está vindo com toda a força
para cima das terras indígenas. Qual é o interesse nisso? Tomar as nossas
terras e utilizá-las para o aumento da produção e da economia do país. O que
está conectado com o interesse do Executivo, pois faz parte do plano de
crescimento do Brasil. O Executivo e o Congresso Nacional estão aliados para
atender aos interesses do agronegócio e dos grandes empresários. Esse é o nosso
maior enfrentamento dentro do Congresso Nacional hoje.
CC: Projetes de Leis e Emendas
Constitucionais propõem mudanças nos processos de demarcação de terras
indígenas. O que está em jogo?
SG: A gente tem uma demanda de demarcação ainda muito
grande no Brasil e não vemos interesse do Governo Federal em avançar nisso. O
que a gente vê é o retrocesso. Meses atrás a ministra Gleisi Hoffmann [Casa
Civil] suspendeu os estudos de identificação no Sul do país. Há interesse
de se travar os processos de demarcação por conta dos interesses pessoais dos
deputados latifundiários que têm grandes extensões de terras. Projetos como a
PEC 215, a PEC 38, o PLP 227, não só dificultam a demarcação, como tentam rever
terras já demarcadas. Também existem casos de áreas demarcadas, mas muito
pequenas, e determinados povos tentam a sua ampliação há anos. Com essas
medidas, não se poderá mais ampliar a terra indígena no Brasil.
CC: O que movimento indígena fez até
agora para impedir a PEC 215?
SG: Em abril, ocupamos o plenário da Câmara e
conseguimos impedir a instalação da comissão especial que vai dar o parecer
sobre a PEC. Também conseguimos instalar um GT paritário entre indígenas e
parlamentares para se discutir a questão. De abril até agora, setembro, o GT
fez várias reuniões e audiências públicas com a participação de juristas importantes.
A conclusão foi que a PEC 215 é inconstitucional, portanto, inviável, porque
sugere sobreposição de poderes. A Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos dos
Indígenas entrou com uma petição colocando todos os pontos da
inconstitucionalidade. Mas mesmo com o resultado do GT, o presidente da Câmara
criou a Comissão Especial que vai analisar a proposta, e sem a participação do
PT, que se negou a indicar seus membros por ser contra a proposta. A instalação
está programada para a semana da mobilização e a gente vai achar ótimo (risos).
CC: O Executivo se diz contra a PEC
215?
SG: O Executivo não concorda que tire esse poder dele e
passe para o Legislativo. Inclusive, a presidente Dilma, na reunião com o
movimento indígena em julho deste ano, afirmou que é veementemente contra. Foi
essa a palavra que ela usou. A Dilma disse que está junto com o movimento
indígena para não aprovar essa PEC. A gente acha que ela chamou a base do PT na
Câmara para fazer essa incidência e os parlamentares se manifestaram contra.
CC: O PLP 227, que legaliza
latifúndios e assentamentos dentro das terras indígenas, foi anunciado no mesmo
dia da reunião com a Dilma. Como o movimento indígena recebeu essa notícia?
SG:. No momento em que estávamos
conversando para tentar um diálogo com o governo anunciam o projeto de lei 227.
A gente se sentiu totalmente traído, porque foi articulado entre o Executivo e
o Legislativo. No momento em que ela falava que era contrária a PEC 215 já estava
dada a carta branca para negociar o PLP 227. É um jogo muito articulado entre
os poderes para avançarem com seus interesses. O PLP 227 é muito mais perigoso
que a PEC 215 porque diz que tudo que é de interesse relevante da União e que
pode ser instalado sem direito à consulta. O que eles entendem como relevante
interesse é o interesse privado, os empresários explorando as terras indígenas.
E como é complementar está mais fácil ainda, porque não precisa ser discutido,
vai para a plenária direto para votar, e o voto é fechado. Já foi criada uma
Comissão Especial para dar o parecer do 227.
CC: E o PL da Mineração?
SG: Ele é extremamente perigoso, pois é para atender os
interesses dos grandes empresários da mineração que querem explorar em terras
indígenas. Eles vão dizer “as comunidades vão se beneficiar”, mas não vão. Não
podemos pensar dessa forma e receber compensações. A gente não tem que negociar
o direito do usufruto exclusivo dos povos indígenas, que a Constituição
garante. Assim, a terra deixa de ser um bem do povo indígena e passa a ser do
interesse privado.
CC: E o “decreto da repressão”? Por
que foi apelidado com esse nome pelo movimento indígena?
SG: O Decreto 7.957, instituído este ano, é uma medida
autoritária porque regulamenta a atuação das Forças Armadas na proteção
ambiental. Foi criado para garantir que sejam feitos os estudos de
licenciamento ambiental dos grandes empreendimentos e impedir que os indígenas
façam manifestações contrárias a esses estudos. Ou seja, se utiliza a Força
Nacional para proteger a realização dos estudos, mas, na verdade, ela deveria
fazer a proteção do território para os índios viverem de forma mais tranquila.
CC: Como o movimento indígena está
enfrentando essas ofensivas?
SG: As ofensivas vêm tanto do Legislativo como do
Executivo. E do Judiciário também, porque há uma morosidade muito grande em
resolver os casos sobre a questão da terra. Na verdade, os três poderes estão
contra os direitos indígenas, essa é a nossa avaliação. Os ataques aos direitos
indígenas são para atender o modelo desenvolvimentista do país e os interesses
pessoais do agronegócio. O Executivo tem seus projetos desenvolvimentistas e o
Congresso, os seus parlamentares ruralistas. No ano passado, a gente focou a
luta contra a Portaria 303. Foram várias manifestações em todo o país. O
movimento indígena teve uma presença quase permanente em Brasília. Conseguimos
que os ministros anunciassem a sua suspensão temporária. Em junho, fizemos um
“tuitaço” e o PLP 227 foi o assunto mais comentado do mundo nas redes sociais.
Ele estava para ser votado naquele dia em requerimento de urgência e
conseguimos impedir.
CC: Como será a mobilização na
próxima semana?
SG: O movimento indígena se organizou para estar em
Brasília durante toda a semana. Conseguimos a adesão de várias entidades e
movimentos sociais. Cerca de mil lideranças estarão em Brasília para refletir e
discutir os 25 anos de Constituição. Como se deu essa luta? O que a gente
conquistou? O que podemos fazer para não perder os nossos direitos? Temos
audiências marcadas no Congresso Nacional, com os ministros, e no Judiciário.
Essas leis e medidas anti-indígenas despertaram no movimento a vontade de ir
para as ruas de novo. Os povos estão se juntando e acreditando que podem travar
todas essas medidas postas pelos três poderes. O movimento indígena nacional se
fortaleceu. Como dizem nossos parentes, o momento é de guerra. A gente tem que
ir para cima mesmo, não tem mais como você ficar assistindo ou reclamando. Eles
estão vindo com muita força. É hora de ir para cima, para o embate.
*Maria Emília Coelho é jornalista e Coordenadora de
Comunicação do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB)
Fonte:
Carta Capital
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