Mais de mil pessoas de diversos
povos de Roraima se reuniram na comunidade do Barro, região do Surumu, na Terra
Indígena Raposa Serra do Sol, nesta quarta-feira (23), para reafirmar a
relevância do cumprimento dos direitos indígenas, enquanto o Supremo Tribunal
Federal (STF) se reunia para julgar os embargos de declaração relativos à
decisão do mesmo tribunal que, em 2009, garantiu a homologação em área continua
da reserva.
Lideranças e participantes do ato
público comemoraram a posição da Corte no que se refere à manutenção da
integridade do território indígena, conquistado ao longo de décadas de luta, e
à limitação das 19 condicionantes incluídas na sentença de 2009 e contestadas por
comunidades indígenas e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao caso
específico da Raposa Serra do Sol. Ao menos do ponto de vista jurídico, tal
desvinculação afasta a aplicação de medidas consideradas restritivas à garantia
de direitos de povos de outras áreas. A extensão das 19 condicionantes a outros
casos de demarcação foi prevista na Portaria 303/2012, da Advocacia-Geral da
União (AGU), que insiste em sinalizar com o instrumento (ora suspenso), mesmo
diante do revés sacramentado pelos membros da Corte maior do país.
“O saldo é positivo. Além de
descartar a vinculação do caso específico da Raposa Serra do Sol para outras
demarcações, o julgamento no STF acabou esclarecendo algumas questões
importantes”, comentou a advogada Joenia Batista de Carvalho, da etnia
Wapichana, que atua no departamento jurídico do Conselho Indígena de Roraima
(CIR). “Para o contexto atual em que setores antiindígenas têm exibido a força
de seus interesses, especialmente no Congresso Nacional, o julgamento foi um
passo importante na linha da defesa de direitos indígenas”. Saiba mais sobre a
que é considerada a maior ofensiva contra indígenas em 25 anos.
Entre os pontos reforçados no
decorrer do julgamento da Petição 3388, Joenia destaca a referência feita pelo
ministro relator Luís Roberto Barroso, que teve o voto majoritariamente acatado
pelos pares no STF, no sentido de que a despeito da revalidação do conjunto de
condicionantes que referendam o “princípio de soberania nacional”
(especialmente nas áreas de defesa nacional, energia e meio ambiente) acima da
posição das comunidades não se deve “fugir” da consulta aos povos indígenas
prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Além disso, emenda a advogada do
CIR à Repórter Brasil, o julgamento do STF realçou a prerrogativa do Poder
Executivo quanto às demarcações de Terras Indígenas (TIs), inclusive abrindo a
possibilidade de que a União promova ampliações por outros meios, como
desapropriações. Para o relator, apenas o procedimento peculiar de demarcação
de terras decorrente de elaboração de laudos antropológicos não deve ser
refeito, com vistas a evitar “perene instabilidade jurídica”.
Joenia e outros integrantes do
CIR que acompanharam o julgamento em Brasília (DF) seguiram diretamente para a
comunidade do Barro para transmitir o relato da decisão no STF e prestar
esclarecimentos à multidão reunida há pelo menos dois dias no principal ponto
de acesso à Raposa Serra do Sol, mesmo local em que a demarcação em área
contínua foi comemorada.
Manifestações
A reportagem acompanhou a
manifestação no Surumu, nesta quarta-feira (23), que reuniu um grande número de
lideranças (conhecidos como “tuxauas”) da região, assim como amplos coletivos
de jovens estudantes indígenas. O professor local macuxi Evaldo Silva Alves
empunhou o microfone para denunciar os seguidos ciclos econômicos que
impulsionaram invasões ao território indígena do início da colonização às
“fazendas reais” que introduziram a pecuária extensiva nos idos de 1850, do
espalhamento das atividades do garimpo (1940) à intensificação do agronegócio
dos largos monocultivos de arroz (1990). “Todos com muita violência, dominação
e aculturação, de modo predatório aos modos de vida indígenas.”
Daí que, segundo ele, é preciso
resistir contra as ofensivas correntes que visam enfraquecer os direitos
indígenas, que incluem não apenas as 19 condicionantes rechaçadas pelos
movimentos, mas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere a
prerrogativa das demarcações ao Congresso Nacional; e a Proposta de Lei
Complementar (PLP) 227, que busca viabilizar explorações econômicas dentro de
terras indígenas.
Ao longo do dia até à noite,
foram feitos discursos e realizadas apresentações culturais que sublinharam a
história de luta das comunidades locais, a importância de mais uma “batalha
vencida” com alguns dos posicionamentos principais após o julgamento do STF e,
sobretudo, a necessidade de manter a “chama acesa” das mobilizações contra as
ameaças que seguem preocupando os povos indígenas não apenas de Roraima, mas de
todo o Brasil.
O repúdio às mesmas iniciativas
também se repetiu em debate realizado na última terça-feira (22), durante a
Reunião do Conselho Local de Saúde da Região das Serras, também acompanhado
pela Repórter Brasil. Mais de uma centena de conselheiras e conselheiros
questionaram, entre outros itens, as razões pelas quais o Estado brasileiro
teria ratificado a Convenção 169 da OIT, uma vez que não parece estar disposto
a promover, de fato, consultas livres e informadas acerca de empreendimentos
que afetam os povos indígenas.
Quanto à gestão das áreas de
conservação, por exemplo, defenderam a atuação das próprias comunidades em
detrimento da intervenção do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), conforme propugna parte das condicionantes aceitas
pelo STF.
Coordenadora de mulheres do
Maturuca e integrante do conselho local, Elenia Maria de Souza cobrou a
aprovação do Estatuto do Índio que, diferentemente das propostas que desagradam
os povos e tramitam pelos Parlamentos, está parado. “Muitas questões
importantes para o nosso movimento indígena estão lá”.
Os participantes condenaram ainda
a tentativa de campanhas antiindígenas de associar a Raposa Serra do Sol à
miséria e à fome. O suposto quadro de extrema vulnerabilidade e carência social
– propagado por determinados veículos da imprensa regional e nacional, e
inclusive repetido pelos ministros Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes no
decorrer do referido julgamento contrasta com a ampla e variada produção
atestada pelos indígenas. Tal caracterização tem por finalidade, segundo as
conselheiras e conselheiros locais reunidos no Centro Maturuca, depreciar a
imagem indígena e “justificar” perversos preconceitos.
“O homem branco faz tantas leis
que ninguém entende mais qual é a que ampara as pessoas. Fazem leis que deixam
de servir de uma hora para outra. E criam outras novas. Ninguém sabe qual é”,
avalia o “tuxaua” macuxi Orlando Pereira, que também já foi pajé na comunidade
Uiramutã. “A nossa lei é a da vida de cada dia. Precisamos de terra e de meios
para garantir plenamente as nossas vidas. Vamos respeitar os povos indígenas.
Não aceitamos humilhação”.
Por Maurício Hashizume, de
Roraima
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