O Brasil
está em guerra. Uma longa, cinco vezes centenária guerra: a nunca sobrestada
guerra contra os índios. O assassinato do terena Oziel Gabriel, no dia 30 de
maio, em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul, estado que concentra mais de 50 por
cento dos assassinatos de índios no país, nada mais é que um trivial,
corriqueiro episódio desse conflito. Afinal, matar índio faz parte dos usos e
costumes nacionais desde que Cabral aqui aportou.
Era de se
esperar que, com o passar dos tempos, com a civilização e refinamento de nossas
elites fazendeiras, nesse processo contínuo de aquisição de valores
humanitários, culturais e sociais, era se esperar que o velho costume de matar
índios fosse superado.
Como um
dia superamos a antiga usança de escravizar negros que, ressalve-se, só foram
caçados e sequestrados na África porque os nossos índios se revelaram “mão-de-obra
antieconômica”, pois morriam incontrolavelmente no cativeiro.
Aprendemos
nos livros escolares que o ponto alto da chegada da família real portuguesa à
colônia brasileira, em 1808, foi a decretação da abertura dos portos pelo
príncipe regente D. João. No entanto, dois meses depois de instalado no Rio de
Janeiro, D. João toma outra decisão que os nossos livros e a nossa memória
seletiva dos fatos históricos omitem.
No dia 13
de maio de 1808, por Carta Régia, o príncipe declara guerra aos índios botocudos,
por resistirem à expansão das fazendas e áreas de exploração de minas, na
Capitania de Minas Gerais. No entanto, proprietários de terras, minas e
tropeiros de toda a Colônia, expandiram o alcance da Carta Régia e
consideraram-se licenciados a empreender guerra contra todos os índios que
habitavam o território brasileiro.
Em meu
estado, o Paraná, a Carta Régia chancelou um antigo costume que subsistiu até o
final do século 19, o costume dos fazendeiros das regiões dos Campos Gerais e
dos Campos de Guarapuava e Palmas organizarem, anualmente, uma expedição
guerreira contra os índios.
A cada
sortida, eles eram mais e mais empurrando-os em direção às fronteiras com o
Paraguai e a Argentina, e tinham suas terras apossadas para a expansão
agricultura, da pecuária, da apanha da erva mate e exploração da madeira.
A Carta
Régia declarando guerra aos botocudos contem as mesmas justificativas hoje
usadas para usurpar as terras dos índios. Estão lá os argumentos em defesa da
produção, estão lá os apelos para que os índios submetam-se aos brancos para
“gozarem os bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce, debaixo de
justas e humanas leis (….)”.
Como
estão lá as acusações aos índios de violência, crueldade e perturbação da
ordem, como se fossem eles, ontem e hoje, os causadores dos conflitos. E a
Carta Régia chega ao mais alto grau de mistificação ao acusar os botocudos de
antropofagia e vampirismo. Segundo o príncipe, além de esquartejar e devorar os
“tristes restos” de suas vítimas, os índios abriam feridas nelas “para depois
sorver o sangue”.
Quanto à
antropofagia, grande parte de nossos autores negam-na; foi pretexto para
reforçar a declaração de guerra; já o “vampirismo” dos botocudos fica à conta
da ignorância, superstição e fantasia européias de nossos colonizadores.
A
oficialização da matança desenfreou tal violência e crueldade que, citam
historiadores, obrigou o próprio governador da Capitania de Minas Gerais,
beneficiária imediata da decretação de guerra, a intervir e adotar outros
métodos para submeter os rebeldes. Mesmo porque a “solução final” do genocídio
não surtira os resultados esperados.
A Carta
Régia de 1808 faz uma declaração de guerra permanente contra os índios.
Diz o
futuro D. João VI:
– Que
desde o momento em que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar
como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que
continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim,
senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações (quer
dizer, terras) e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de
maneira tal que movidos do justo terror das mesmas, peçam a paz e sujeitando-se
ao doce jugo das Leis e promettendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos
uteis, como já o são as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos
Estados do Brazil se acham aldeados e gozam da felicidade que é consequencia
necessaria do estado social”.
Enfim, a
velha máxima de que índio bom é índio morto. Ou, quando muito, por generosidade
das autoridades e dos fazendeiros, índios submissos aos seus interesses; índios
aldeados, vivendo longe de suas terras, sem terras.
Foram-se
os tempos da Colônia, foi-se o Império, veio a República, a velha e depois a
dita nova, e a Carta Régia de 1808 continua vigendo, impávida, soberana,
imutável. Ouço aqui, neste plenário, leio nos jornais, vejo nas televisões e
ouço dos rádios a mesma defesa do aldeamento ou urbanização dos índios,
“civilizando-os”, privando-os de suas terras, exterminando sua cultura, sua
língua, sua crença, sua identidade.
Os gregos
Heródoto e Tucídides, e o romano Cícero talvez tenham sido os primeiros a
divulgarem o conceito de historia magistra vitae, a história como mestra da
vida, expondo pragmaticamente os fatos para que o homem aprendesse com os erros
do passado.
Não é o
caso das relações do governo e da sociedade brasileira com os índios. O
assassinato do Terena Oziel mostra que pouco aprendemos com o passado, com os
erros acumulados por tantos séculos. A antropofagia e o vampirismo de ontem são
atualizados por toda a sorte de pretexto, hoje, para a invasão das terras não
apenas dos índios e sim também das populações tradicionais dos quilombolas.
O
príncipe justificava a declaração da “guerra permanente” contra os índios por
causa dos graves prejuízos por eles causados aos fazendeiros e “à minha Real
Coroa”, isto é governo colonial. As rationes lupi de ontem são as razões do
lobo de hoje, porque a guerra continua permanente, sem trégua, impiedosa. Uma
guerra de extermínio.
E como se
comporta o nosso governo, hoje?
Este
governo retrocedeu em relação aos governos de Sarney, Fernando Henrique e Lula
no tratamento da questão indígena.
De todos
os governos desde a redemocratização, este governo foi o único que não recebeu
os índios. Recebe todo mundo, até o Carlinhos Brown e sua ridícula caxirola,
mas não recebe índios. Os representantes do agronegócio tornaram-se, como se
diz , “figurinhas carimbadas” dos eventos palacianos, e tem na ministra-chefe
da Casa Civil um interlocutor privilegiado. Já os índios mendigam ouvidos e
corações abertos pelos corredores legislativos, pelos jardins da Esplanada dos
Ministérios, expondo-se à indiferença, ao escárnio e ao preconceito.
O
antropólogo Gilberto Azanha, um de nossos melhores especialistas, deplora: “(…)
o governo Dilma retrocedeu neste debate e interpreta as questões indígenas com
o olhar do agronegócio”.
Na mesma
linha, o coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas da prestigiosa
Associação Brasileira de Antropologia, João Pacheco de Oliveira, diz que nos
últimos anos foi paralisado o processo de reconhecimento dos direitos dos
índios; e, segundo ele, a investida do agronegócio afeta também as populações
tradicionais e as terras dos negros descendentes de escravos africanos.
Pelo que
se vê, não é apenas a economia do Brasil que se vê refém das commodities, o
governo federal também foi sequestrado pelos produtores de carnes e grãos.
De 2003 a
2011, informam estatísticas medianamente confiáveis, foram assassinados no país
mais de 500 índios; nesse último ano da macabra medição, 62 por cento dos
assassinatos aconteceram no Mato Grosso do Sul:
— Com uma
taxa de homicídios de 100 por 100 mil pessoas, maior que a do Iraque e quatro
vezes maior que a taxa nacional, o povo Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do
Sul, enfrenta uma verdadeira guerra contra o agronegócio”, diz relatório do
Conselho Missionário Indigenista.
O hoje
tão vilipendiado e odiado CIMI, alvo de todas as maldições de parte do
agronegócio.
Mas
bendito seja o CIMI. Benditos sejam D. Tomás Balduíno e D. Pedro Casaldáglia.
Benditos sejam todos aqueles que, ao longo de nossa história, confrontaram os
ditames da Carta Régia de 1808, que oficializou uma prática que, na verdade,
desembarcou nas terras de Santa Cruz com os europeus.
Prática
essa que alçou a heróis da Pátria genocidas como Raposo Tavares, Borba Gato e
outros aventureiros que se distinguiram pela preação de índios, para fazê-los
escravos.
Além de
destruírem as reduções jesuíticas, que abrigavam milhares de índios, duma só
feita, bandeirantes como Raposo Tavares capturaram no Paraná e levaram para São
Paulo mais de 200 mil índios, contam historiadores de minha terra.
Se
glorificamos os genocidas do passado, como punir os torturadores do presente?
Quem
serão os heróis do genocídio de hoje
Senhoras
e senhores, uma vida, toda vida não vale um pedaço a mais de terra, uma saca a
mais de soja, uma arroba a mais de carne, quer essa vida seja a de um índio,
quer seja de um produtor rural.
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