Segundo a deputada, a pauta ruralista no Congresso
visa congelar as demarcações, deslegitimar a Funai e permitir o avanço da
mineração e da agropecuária sobre as aldeias.
Os
conflitos fundiários envolvendo povos indígenas não dão sinais de arrefecer,
assim como o jogo político em torno da questão. Em protesto contra a demarcação
de terras feita pela Fundação Nacional do Índio (Funai), mais de mil produtores
rurais interromperam um discurso de Dilma Rousseff em Campo Grande, na
segunda-feira 29, aos brados: "Demarcação, não. Sim à produção”. O
episódio ocorreu uma semana após cerca de 700 índios de diversas etnias
ocuparem o plenário da Câmara na tentativa de impedir a tramitação da PEC 215,
que transfere para o Congresso a decisão de homologar ou não as terras
indígenas.
Na
prática, a medida congela a demarcação de novas reservas e ameaça as já
existentes, por causa da força do lobby do agronegócio no Parlamento, avalia a
deputada Janete Capiberibe (PSB-AP), integrante da recém-criada Frente
Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas. "Há uma forte ofensiva
legislativa patrocinada pelo agronegócio”, alerta. Na entrevista abaixo, ela
elenca os principais projetos que ameaçam as terras indígenas, entre eles o que
prevê o arrendamento de aldeias para o agronegócio, e critica a postura de seus
colegas no Legislativo. "Eles se recusam a ouvir os índios ao avaliar
esses projetos”.
CartaCapital: O que representou a ocupação do
Plenário da Câmara pelas lideranças indígenas em 16 de abril?
Janete Capiberibe: A ocupação forçou a abertura de um canal de diálogo.
Além de motivar a criação da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas,
o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), teve de ouvir as
reclamações e propor um acordo. O deputado se comprometeu a só instalar a
comissão especial que vai avaliar a PEC 215 no segundo semestre. Essa proposta
transfere a decisão de homologar as demarcações de terras indígenas para o
Congresso, além de prever que os parlamentares ratificariam as reservas já
existentes. Ou seja, o Legislativo confirmaria ou não a posse dessa terra pelos
índios. Só que o lobby da bancada ruralista é muito forte na Câmara. Uma medida
como essa ameaça todas as reservas do País, novas ou antigas. Os índios
ocuparam o Parlamento para serem ouvidos, pois em nenhum momento eles foram
consultados sobre a possível mudança nas regras das demarcações.
CC: Adianta simplesmente postergar o debate?
JC:
Na verdade, houve outros avanços. Os líderes de oito partidos (PSB, PT, PDT,
PSDB, PSC, PSOL, PR e PCdoB) se comprometeram a não indicar representantes para
essa comissão especial da PEC 215. Sem essas indicações, a comissão não pode
ser instalada. É uma forma de evitar a aprovação dessa emenda sem um debate
mais amplo. Além disso, foi criado um grupo de trabalho, com 10 lideranças
indígenas e 10 deputados. Desses parlamentares, metade é pró-indígena e a outra
metade, ligada ao agronegócio. O GT terá a missão de debater a proposta antes
da instalação da comissão propriamente dita que avaliará a PEC 215. Aliás, não
somente essa proposta, mas outros projetos de lei que ameaçam os índios. Há uma
forte ofensiva legislativa, patrocinada pelo agronegócio, sobre as terras
indígenas.
CC: Que outras propostas ameaçam os índios?
JC:
Há o Projeto de Lei 1610, de 1996, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR),
que permite a mineração privada em territórios indígenas mediante o pagamento
de royalties. Eu, inclusive, faço parte da comissão parlamentar que avalia o
tema, mas é muito forte a atuação dos parlamentares anti-indígenas, ligados ao
agronegócio ou à mineração. Eles são maioria no Congresso. Trata-se de uma
atividade econômica que provoca sérios impactos ambientais e é bastante nociva
para quem vive da floresta. Tem também a PEC 237, de Nelson Padovani (PSC/PR),
que prevê o arrendamento de terras indígenas para o agronegócio.
CC: Mas se os índios arrendarem suas terras, vão
fazer o quê?
JC:
O risco é enorme. Eles podem ser forçados a migrar para os centros urbanos,
perder contato com sua cultura, seu modo de vida. A mineração também é muito
arriscada. Ela derruba tudo o que está por cima da terra. As reservas indígenas
que eles têm interesse de explorar estão na região amazônica. Ou seja, o
Congresso pode dar o aval para a derrubada da floresta, ou mesmo do pouco que
sobrou da Mata Atlântica. De que adianta pagar royalties ou arrendamento? Os
impactos serão gigantescos.
CC: Mas os índios aceitariam ceder suas terras?
JC:
Acho muito difícil. O território para os povos indígenas tem um significado
muito maior do que o simples espaço geográfico. Tem ligação com sua própria
identidade, noção de pertencimento, práticas, tradições, cultura. Para uma
sociedade capitalista, a terra é apenas uma forma de produção, uma mercadoria.
Para os índios, é muito mais que isso. Recentemente, em protesto contra as
demarcações de terras feitas pela Funai, os ruralistas vaiaram a presidenta
Dilma Rousseff no Mato Grosso Sul. O estado é palco de dezenas de conflitos
fundiários envolvendo fazendeiros e os Guarani-Kaiowá. Várias lideranças
indígenas foram assassinadas. Nos últimos 50 anos, o agronegócio avançou sobre
as suas terras de forma muito agressiva, e hoje eles estão confinados em oito
reservas com áreas entre 2,4 mil e 3,5 mil hectares. Estima-se que 40 mil
Guarani-Kaiowá vivam em acampamentos espalhados pelo País. Sem terra, os
integrantes dessa etnia ameaçam cometer suicídio coletivo, porque é inconcebível
para eles não viver na terra de seus antepassados, de seus ancestrais. E os
parlamentares se recusam a ouvir os índios ao avaliar todos esses projetos.
CC: Não houve consulta em nenhum dos casos?
JC:
A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o
Brasil é signatário, garante o direito de consulta prévia às comunidades
indígenas e quilombolas antes de qualquer intervenção em seus territórios. Mas
a PEC 215 chegou a ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça antes de
os índios serem ouvidos. A exemplo do ocorrido com a PEC 215, a relatoria da
comissão que avalia a mineração em terras indígenas cria obstáculos para fazer
essa consulta. O projeto está praticamente pronto, mas eu insisto num ponto: os
deputados precisam percorrer as aldeias e perguntar se os índios aprovam essa
proposta. Só no meu estado, o Amapá, há 14 etnias que podem sofrer as
consequências nefastas desses projetos.
CC: O deputado Moreira Mendes (PSD-RO) diz ter
coletado mais de 200 assinaturas para instalar uma CPI da Funai, questionando
os critérios usados nas demarcações de terra...
JC:
Essa é apenas uma forma de desacreditar o trabalho da Funai, de deslegitimar a
demarcação das reservas. O agronegócio não aceita perder espaço para os índios.
Esse é o ponto.
Por
Rodrigo Martins 09/05/2013
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